domingo, 17 de abril de 2011

Manifestações contraculturais

MANIFESTAÇÕES DA CONTRACULTURA EM PICOS NOS ANOS 1960/70


                                                                              Nilvon Batista de Sousa Brito (UFPI)*

Resumo: O objetivo desse artigo é realizar uma pesquisa bibliográfica sobre os movimentos de contracultura nos anos 1960/70 ocorridos no mundo e no Brasil e de que forma esse comportamento da juventude repercutiu na cidade de Picos. Usaremos como fonte para a investigação do período a literatura. O estudo tem uma   fundamentação teórica na abordagem da Nova História Cultural, onde o diálogo  entre as disciplinas  Literatura e História  é um fazer historiográfico presumível.
 Palavras chave: Representação – Arte -  Contestação -  Contracultura

Nos anos 60 do século XX a juventude em várias partes do mundo segue um rumo contrário a ordem social. A partir das manifestações estudantis de Paris em maio de 1968 seguir os padrões ditos “normais” pela sociedade ocidental, não fazia mais sentido, a disseminação da contracultura ganhou o mundo e chegou ao Brasil. Mas o que inquietava os jovens brasileiros em 1968 fazendo com que contestassem? A ditadura militar instalada  quatro anos antes, cerceava a liberdade, oferecia um sistema educacional de péssima qualidade e em quantidade tênue. A repressão política e social aliada aos acontecimentos internacionais favoreceu o surgimento dos movimentos estudantis no Brasil. A reação a morte do estudante Edson Luis Lima Sousa, morto no Rio Janeiro  no dia 28 de março de 1968 quando participava de uma manifestação contra a má qualidade do ensino, é uma mostra da organização dos jovens brasileiros contra o sistema repressor, sinalizando um endurecimento da luta para ambos os lados. A culminância das manifestações se deu com a “Passeata dos Cem Mil” no Rio de Janeiro. A inquietação dos jovens estudantes atingia: trabalhadores que afrontavam o regime com greves; a igreja começava a se manifestar na defesa dos direitos humanos e os artistas  e intelectuais  ofereciam suas indignações através de suas obras de arte: o Cinema Novo, o Grupo Opinião e a Tropicália tornavam-se o principal meio de disseminação das idéias contra a ditadura militar no Brasil.


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* Acadêmico do 8° período de Licenciatura em História na UFPI – PI

 Nesse período na cidade de Picos quatro garotos cabeludos com roupas estranhas montram uma banda de Rock chamada Os Rebeldes onde os Beatles e os Rollings Stones eram referências estéticas e musicais. Qual seria a analogia dessa atitude com os movimentos de contracultura que naquele instante abriga uma grande parte da juventude em todo o mundo cooptada  pelos ideais de liberdade?  A atitude de montar uma banda de rock no interior do Piauí tinha o mesmo significa que num  grande centro do Brasil ou do mundo?

Na tentativa de elucidar essas questões fomos buscar apoio na literatura, entendendo que a  interdisciplinaridade da  História com outras ciências humanas é presumível desde a revolução dos Annales. O dialogo entre a  História e a Literatura, se tornou mais em voga com os teóricos da História Cultural que entendem essa relação do ponto de vista epistemológico onde há uma aproximação e um distanciamento entre as duas disciplinas: ambas reportam o mundo e “são formas de explicar o presente, inventar o passado e imaginar o futuro”. O distanciamento se   dar na configuração do tempo: enquanto a história tem uma preocupação  de se aproximar do real a literatura se entrega a imaginação  (PESAVENTO, p. 80 -81). Sobre esse aspecto da representação buscaremos na abordagem das representações sociais,  que foi inicialmente teorizado pelo psicólogo social europeu Serge  Moscovici, uma aproximação com o passado:
As representações que nós fabricamos – duma teoria científica, de uma nação, de um objeto, etc – são sempre o resultado de um esforço constante de tornar  real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um sentimento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal (...) as imagens e idéias com as quais nós compreendemos o não-usual apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos familiarizados (Moscovici, 2007,p.58)

Dessa forma, buscaremos na literatura essa familiaridade com o recorte histórico do período da década de sessenta  com o objetivo de entender como se deu essas manifestações de contracultura na cidade de Picos. Nessa perspectiva  tomaremos como ponto de partida a obra literária de Gilson Chagas “Música para Pensar”. A obra nos aponta dois fatos que podem estar ligados ao movimento de contestação: a existência de uma banda de rock chamada Os Rebeldes, formada no final dos anos 60 na cidade de Picos e um grupo de estudantes que se reuniam para discutir e produzir literatura nos fundos de um armazém, resultando dessa afluência  um livro de poesia; ”Curvas do meu Caminho” e um jornal estudantil; “O Brado Estudantil”1 .                                                                                           

Nesse período, segundo Castelo Branco (2005), existia um envolvimento  incondicional dos jovens com a arte. A obra de arte no movimento de contracultura, é mais que um objeto de consumo, ela não se encerra no momento em que se fecha o livro ou que terminar de escutar o disco, ela encontra no receptor uma continuação do seu propósito: “Neste período, quem ouve uma música, lê um romance ou aprecia um quadro, na maioria das vezes está sendo desafiado a participar numa crescente escala  sensorial, emprestando seu corpo, seu ‘eu’ como requisito construtivo da obra de arte.” (CASTELO BRANCO p.17) Mas o que foi mesmo a contracultura?

Antes de pesquisar sobre a existência de movimentos de contracultura em Picos faz-se necessária uma reflexão a cerca do termo e do movimento de contracultura disseminados no  mundo, onde surgiu e quais as suas conseqüências. Para isso fomos buscar no livro O que é Contracultura de  Carlos A.M Pereira uma discussão a cerca do termo contracultura.

Assim, nessa obra  o movimento é apresentado como uma revolução contra os costumes tradicionais, onde novos valores  são assimilados entre os jovens, “ cabelos longos, roupas coloridas, misticismos, um tipo de música, drogas e assim por diante”.  Por meio de um comportamento rebelde e  individual começava-se  a desenhar “contornos de um movimento social de caráter fortemente libertário”(PEREIRA, 1988 p.8). Para Pereira a união entre arte e comportamento era uma característica intrínseca  do movimento de contracultura , de uma maneira mais particular  a música, e  de forma mais intimo, ainda, ao rock and roll, essa era a principal arma dessa revolução: questionar tudo que era considerado normal por meio da arte e do próprio corpo. ”(PEREIRA, 1988  p.9).
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1. Não foi encontrado nenhum exemplar  do “O Brado Estudantil” após pesquisar acervos e arquivos pessoais de colecionadores de jornais e revistas da cidade de Picos. Por email, Adalberto Lima, um dos articulistas  do jornal nos informou que  o último exemplar foi extraviado  quando exposto em um  evento de literatura. 
 Essa revolução teve como movimento precursor  a Geração Beat dos anos 50 onde o poema “Howl”2 de Allen Ginsberg instigava a juventude a se rebelar,  nascendo assim um movimento que irá se desenrolar e alcançar o auge na década seguinte. No entanto, nesse momento não existe no movimento nenhuma conotação política,no sentido de organização partidária, apenas atitudes rebeldes contra a família e a escola,  nascendo assim uma oposição entre o mundo adulto e o juvenil. Nos anos sessenta os Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones   desempenharam um papel fundamental para o crescente número de adeptos dessa revolução dos costumes. Assim como os grandes festivais de rock: montrey, 1967, woodstock em 1969 e Altamont  vão ser responsáveis pela massificação do movimento. O público desses festivais era constituído basicamente por  hippies com suas manifestações de paz e amor.  
A politização da  contracultura acontece com a mudança de atitude dos  hippies, que antes se limitava a se vestir diferente e a máxima politização era a passeata pela paz, agora surge o Partido Internacional da Juventude popularizando a figura transformada do hippie em yippie, uma espécie de hippie politizado. Uma representação dessa transformação seria o maio de 1968 com a revolta dos estudantes na França. Esse ano ficou marcado pela radicalização dos posicionamentos políticos, a contracultura chega assim a um nível de contestação social  impossível de ser ignorada pela sociedade  tradicional.  
Sobre o termo contracultura Pereira  vai buscar nos depoimentos de Luis Carlos Maciel, articulista de vários jornais underground na década de 70 e autor de vários livros sobre o tema, algumas pistas importantes para o entendimento  do vocábulo:


É um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, a cultura vigente e oficializada pelas principais instituições das sociedades do Ocidente.Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. No sentido universitário do termo é uma anticultura. Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadêmicos. (PEREIRA, 1988  p.11)



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2."Howl é um poema escrito por Allen Ginsberg, como parte da sua coleção de poesia intitulado 1956 Howl e Outros Poemas. The poem is considered to be one of the principal works of the Beat Generation along with Jack Kerouac 's On the Road (1957) and William S. Burroughs's Naked Lunch (1959). O poema é considerado uma das principais obras da Beat Generation, juntamente com Jack Kerouac 's On the Road (1957) e William S. Burroughs' s Naked Lunch (1959). "Howl" was originally written as a performance piece, but it was later published by poet Lawrence Ferlinghetti of City Lights Books .

            A cultura é para Maciel, resultado de ações tanto objetivas como subjetivas vindas de diferentes elementos em tempo e espaço distintos e possíveis de ser interpretada. . Assim a analise da cultura tradicional  levou a descoberta de doenças que contaminam o homem.  Em Marx essa doença chama-se “alienação” resultado da exploração econômica  e em Freud “neurose” , fruto da repressão dos instintos.  A não aceitação  da cultura  doente e o desejo juvenil de uma vida “saudável” que se oponha a essa sociedade do  stablishment levou ao surgimento da contracultura. Assim  o termo contracultura pode designar  “o conjunto de movimentos de rebelião da juventude”( Idem, p14-20) desencantada e rebelada que marcou os anos sessenta:

O movimento hippie, a música rock, uma certa movimentação nas universidades,viagens de mochila, drogas, orientalismo e assim por diante.e tudo isso levado a frente com um  forte espírito de contestação, insatisfação, de experiência, de busca de uma outra realidade, de um outro modo de vida trata-se,então de um fenômeno datado e situado historicamente e que, embora muito próximo de nós, já faz parte do passado. (PEREIRA, 1988, p.20)


De acordo com  Pereira  o  termo pode ser empregado também de forma  abstrata quando se refere a representações de uma vontade, de um espírito de contestação. Empregado dessa forma o termo não se associa a uma temporalidade podendo ser usado sempre que aconteça uma situação de oposição a uma ordem vigente.

Assim, após discutir o significado do termo contracultura podemos buscar uma outra visão do assunto no livro  Todos os Dias de Paupéria,   de Edwar Castelo Branco intitulado com muita propriedade de “Deslumbramento e Susto: maravilhas tecnológicas, captura social e fuga identitária   nos anos sessenta”, aqui uma  analise  contextual  sobre o período em questão que vai nos ajudar a entender aquele momento de agitação cultural. Nesse capítulo são apontadas as inovações tecnológicas e as diferentes maneiras de percepção dessas inovações como o fator fundamental  que levará a juventude a questionar a sociedade estabelecida. Esses conflitos serão responsáveis pela subjetivação dos personagens que viveram aquele período, ou seja, as várias maneiras de perceber -  aceitar ou não -  as inovações tecnológicas. Esse conflito é abordado como fator primordial da mudança no panorama cultural. “As inovações tecnológicas mudavam o ritmo de vida das pessoas e isso era percebido pela subjetivação dessas mudanças refletidas de modo especial nas artes por meio dos signos” ( CASTELO BRANCO, 2005. p.55)
Muitos ao não aceitarem esse sistema, passam a viver uma vida paralela, em desacordo a ordem mundial industrializada e passam a viver no subterrâneo, ou underground, os hippie foram a expressão máxima desse pensamento de  cair fora do sistema e criam uma vida voltada para a natureza, para a paz e o amor. Sair pelo mundo de mochilas nas costas, virar as costas para um mundo do qual não concordavam e não vislumbravam oportunidades de mudanças, essa parecia ser a saída mais próxima e plausível. A juventude ao se entregar ao desbunde parecia estar a procura de novos significado para o mundo. Por outro lado, existia a juventude engajada nos movimentos estudantil da UNE que preferiam contestar os costumes de forma tradicional, ou seja, por meio da política. São duas maneiras diferentes de se posicionar contra os antigos valores.  “Os anos sessenta vêem emergir a filosofia do drop out, cuja maior expressão será o movimento hippie, mas ao mesmo tempo, por outro lado, vastos setores jovens se propõem nas mais diferentes regiões do planeta, a participar do drop in da política mundial. (CASTELO BRANCO, 2005 p.66)
Para Castelo Branco destacar  as diferentes maneiras  de perceber as “maravilhas tecnológicas” no Brasil, seria  uma tarefa complexa, isso por existir um abismo  entre os grandes centros  urbanos e as pequenas cidades, ou seja,  “o mundo rural, ainda  relativamente privado destas inovações”. São, pois, os citadinos  os primeiros  a perceber essa mudança , a entender que existe algo novo no  ar e que  essas novidades afetaram suas vidas. Assim os sujeitos se posicionaram a favor  das inovações enquanto outros  se manifestaram  contra. É dessa forma que a década de sessenta é mostrada na obra analisada, como “um momento de confronto entre o velho e o novo”, onde os sujeitos se   posicionam  radicalmente durante todo o período de forma dicotômica: esquerda e direita, underground e stablismen e até mesmo jovens e adultos. São posicionamentos provocados com a percepção da contradição  do progresso e a consequente subjetivação dos indivíduos :


 Ao se entranharem, novo e velho se conflitam. As pessoas que viveram a época misturam sentimentos de empolgação, susto, tristeza, euforia e estupefação diante das transformações que, naqueles anos, parecia dar-se em ritmo mais acelerado. A pavimentação asfáltica das cidades, a crescente popularização do uso de computadores pessoais, o planeta que se descobre em fotografias aeroespaciais com uma imagem nunca vista antes, a ponto de ser cantado com relativa estupefação, todo esse processo de mudança, tomado no conjunto, geraria uma crise existencial para pessoas que viveram na década de sessenta. E é dessa crise que emergirão novas identidades em nível individual e coletivo no Brasil e no mundo. (CASTELO BRANCO, 2005p.52)



Essas duas obras abordam a contracultura sobre aspectos diferentes. A primeira  apresenta uma abordagem conceitual, enquanto a segunda  traz uma visão  analítica da questão. Contudo ambas nos apontam pistas para um estudo de um período onde a juventude se opõe ao  status quo da  ordem vigente que naquele instante passava por uma transformação radical. E na cidade de Picos, recorte espacial do nosso estudo, como se percebia esse momento histórico? 

Em Música para Pensar (2009), o autor narra a história de Joca, um jovem interiorano que idealiza uma carreira musical em um grande centro urbano, e a amizade com Remedinha, uma jovem estudante recém chegada de Recife onde cursou Estudos Sociais e supostamente  participou de movimentos políticos de esquerda. O livro recria o ambiente desse final de década de 60 e início de 70 em uma representação da vida cultural e social da cidade de Picos. Os lugares freqüentados pela juventude, a escola, os professores, nome de jornal estudantil os transporte e seus donos, a praça, alguns personagens e algumas situações políticas  entram na narrativa, segundo o próprio autor, como elementos agregados aos personagens como  uma forma de homenagear os colegas, como também  um exercício de memória onde  nostalgicamente ele recria o ambiente estudantil da época, do qual  foi personagem. Nessa obra, os Rebeldes  aparece em um show ao lado de Jorge Petras, codinome artístico do  personagem principal, em uma apresentação no Cine Spark como a novidade musical da cidade “que já tinha firmado nome na região e pouco a pouco ganhava cartaz até fora do estado” (CHAGAS, 2009 p.88).

Enquanto o livro nos revela a dimensão da importância da banda no cenário artístico da época as fotografias expostas abaixo, do acervo do vocalista Odorico Carvalho,  nos revela  outro ponto de fundamental importância dentro da pesquisa, a presença dos signos da revolução juvenil na estética dos integrantes da banda: cabelos longos e roupas extravagantes, não obstante o próprio nome da banda  configura um signo. 

    
(Ilustração 1)                                                                                        (Ilustração 2)

Os Rebeldes eram esteticamente e musicalmente influenciado pelos  Beatles e Rolling Stones, como podemos ver pelas fotografias acima em dois momentos: na ilustração 1 sentados no palco do ginásio da CNEC na vizinha cidade de Santo Antonio de Lisboa momentos antes do show  com os cabelos longos e roupas excêntricas em comunhão com a estética da época. Na ilustração 2 em um outro momento aparecem   com o visual no estilo dos Beatles, sentados no palco do Picoense clube na cidade de Picos. Segundo o vocalista Odorico Carvalho  os integrantes da banda eram: o baterista Eudson,ao fundo;  Odorico Carvalho vocalista, primeiro a esquerda;  o baixista Floriano, o guitarrista e vocalista Antonio Bineta.

Na busca por signos encontramos no  grupo de poetas underground, outro símbolo da época, formado por Adalberto Lima, Ozildo Batista,  Odaly Bezerra e o próprio Gilson Chagas entre outros  aparece também em vários momentos no livro “Música para Pensar”:

[...]Assis Lima acolhe sempre bem todos os jovens amigos de Adalberto. E, dessa forma, reúne-se ali, [no armazém flor de lis] regulamente a autodenominada ‘sociedade dos poetas lisos’, com salvo conduto para fazer poesia. Só que eles exorbitam do direito, aproveitando os intervalos da concentração para fazer algazarra e disputar tocos de cigarro.”(p.66)
[...] Tivesse ele sofrido algum apuro de maior monta, teria procurado, incontinenti, ou com aborrecida freqüência, o circulo intimo do Armazém Flor de Lis, autoproclamado, a época, Academia Picoense de Letras, nos momentos de circunspeção, ou sociedade dos poetas lisos, nos intervalos de autocríticas que tiravam das horas de folia. ( CHAGAS, 2009. p.106)



Esse grupo de poetas underground é também citado por Gilson Chagas no prefácio do livro Senda de Flores e Espinho,  do escritor Adalberto Antonio de Lima, aqui um texto com conotação de reminiscência

Nos idos de setenta e um, adolescentes ainda, eu ele e Odaly Bezerra, outro poeta de mão cheia, dividimos a direção, redação e vendagem do jornal “O Brado estudantil”, que tinha como base física, em Picos, o armazém Flor de Lis de seu irmão Assis Lima, e o colégio “Marcos Parente” como mercado principal.
[...] captávamos patrocínio, redigíamos os editorais,editavamos as matérias dos colaboradores, supervisionávamos a impressão  e vendíamos a tiragem no varejo, percorrendo a cidade, a pé, com os jornais na cabeça.
O Brado, a despeito de uma estréia explosiva ( no âmbito do colégio) não conseguiu romper os muros da primeira edição. Faltou- nos  paciência para esperar nova vaga na  pauta da gráfica – de composição manual – que, nas madrugadas de folga, por um preço camarada, nos abrira suas prensas. A gráfica Picos tardava, mas não era de faltar. A próxima impressão sairia em um dos meses seguintes, provavelmente ainda no ano em curso, desde que as maquinas não nos pregassem uma peça, entrando em parafuso.
Precipitados, demos destinação nada nobre ao lucro obtido na primeira (e única) tiragem – já naquele tempo as farras eram pedregulho nas botas da mocidade. . (CHAGAS in LIMA, 2008, p 7-8)


Pela narrativa percebe-se o caráter underground do movimento: a reunião nos fundos de um armazém, as tarefas concentradas, a venda pelos próprios editores, os limites de circulação e o destino do lucro caracterizam bem e se assemelha a outros movimentos dessa mesma natureza que aconteciam no Brasil na mesma época e em outras partes do mundo. É nesse período que Gilson escreve o seu primeiro livro  “Curvas do meu Caminho”, que será  publicado somente em 1973. Abaixo trecho do poema “Areia Branca”
                                                         
Fui mais longe e te confesso
Que vi na pátria um exílio,
Meu nome não refletia,
Minha dor ninguém curava.
Mamãe não mais me velava,
Não era visto o meu pranto;
Falava e ninguém me ouvia.

Almas endurecidas, mãos subjugadas,
Corpos abatidos, rostos indiferentes,
Homens que negligenciam
A queda de seu irmão;
Pobres vítimas poluídas
Por uma ambição ingrata,
 Que vendem voz e razão;
Alma, honra e coração
Por um punhado de prata.

Mundo diferente do que aqui existe,
Trajes diversos dos que aqui se vestem,
Vozes opostas às aqui se ouvem.
Vida diversa da que aqui se leva;
Coisas opostas às que aqui se vêem,
Mais diferentes ainda eram as dores minhas
Das leves dores que eu aqui sentia.

Um dia, areia branca,
Eu, teu filho, voltei transformado,
Os desenganos me rasgavam o peito,
As esperanças não mais existiam,
O pessimismo me desfalecia,
Objetivos não mais pretendia;
De mágoas e dores cheguei saciado.

Viver por viver foi meu prisma triste,
Meu coração petrificado e lânguido
Já só sabia evocar meu drama;
Mas eis que a jornada recomeço aos tombos,
E na oscilação eu consumi mais dias,
Pois meu espírito, cansado
De provar novas sensações,
Caía exausto, e levantava após.
                             (CHAGAS, 1973 p.85)

Nesse poema o poeta expressa todo o seu pessimismo e desilusão por efeito de uma sociedade consumista e desumana, situação que transforma e  endurece o sentimento do poeta. No retorno a sua terra natal confessa voltar convertido em um novo individuo. Porém, angustiado com o mundo moderno  que um dia havia sonhado fazer parte e motivo pelo qual deixara sua pequena comunidade rural. No retorno tudo o que desejava era nunca ter saído dali.
Podemos dizer com base na bibliografia estudada que a contracultura foi um movimento de contestação, que teve seu auge nos anos 60, que despertou a juventude para a construção de uma identidade própria e de uma auto-afirmação diante de um sistema massificante. Por meio da rebeldia buscavam construir uma sociedade alternativa  ao modelo  então vigente, onde os valores impostos eram cobrados pela família e pela sociedade  . Dessa tomada de consciência flui o pensamento de uma nova esquerda, inspirada pela juventude, que prega a revolução individual arregimentando através da arte jovens de todo o mundo.

Os signos que caracterizam esse recorte histórico do final dos anos sessenta: cabelos compridos, as roupas, as músicas, os movimentos estudantis, músicas, poesias marginal, cinema marginal, romance etc. por meio dos quais podemos estudar o período, estão presente  entre a juventude picoense do final dos anos 60, possíveis de ser identificados através da literatura, das fotografias e da memória dos sujeitos que viveram aqueles anos. Esses fatos nos leva  a acreditar  que houve uma captura e uma identificação dos comportamentos contraculturais por parte da juventude da cidade de Picos, apesar da cidade não fazer parte do perfil de cidades que passaram  pela transformação tecnológica ,ou seja, cidades de porte grande com ritmo urbano intenso, configuração que possibilitou o surgimento desses movimentos em outros centros urbanos conforme nos aponta Castelo Branco ( 2005). A presença de uma banda de Rock com inspiração nos Beatles e Rolling Stones  e um grupo de poetas underground, são indicativos que a cidade estava saindo de um mundo  rural  e  absorvendo costumes de urbanidade onde as facilidades tecnológicas ganhavam espaço no imaginário coletivo? Como se deu essas manifestações e qual a dimensão e intensidade é uma  questão a ser trabalhada por meio de pesquisa cientifica  onde será possível estabelecer uma discussão em torno  dessa  problematização. 


Referências Bibliográficas

CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.

CHAGAS, Gilson. Música para Pensar. Ipatinga: Saramandaia, 2009.

______________ . Curvas do meu Caminho. Picos: independente, 1973


LIMA, Adalberto Antonio. Senda de Flores e Espinhos. Rio de Janeiro: Usina de Letras, 2008.
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro, Vozes, 2003.
PEREIRA, Carlos A.M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1988.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2. ed. Belo Horizonte: autêntica, 2004.

Referências Bibliográficas de Apoio
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. Tradução Nilo Odalia. – São Paulo.  UNESP,1997



Outras Fontes:
-Informações sobre o poema “Howl”
 (http://translate.google.com.br/translate (Acessado no dia 20/08/09) 

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